Lares e família em tribunal: Filhos chamados a pagar o lar

Por Sónia Domingues , 21 de Novembro de 2023 Notícias

Maria dos Anjos nunca foi muito afortunada na vida. Nascida numa família com poucas posses no norte do país, casou cedo e teve cinco filhos, mas fruto da vida agreste de trabalho que levou, a partir dos 70 anos começou a ficar debilitada. Com os filhos longe e o marido ausente, a idosa deu entrada no lar da Santa Casa da Misericórdia, aos 80 anos, mas a pensão não pagava os custos da mensalidade. Depois de entrar com um pedido de pensão ao marido, o tribunal indeferiu o pedido.
​A idosa acabou por chamar a tribunal os cinco filhos para prestar-lhe a assistência devida. Neste artigo, vamos recriar uma decisão verídica que chegou aos tribunais portugueses, no entanto, a história e as personagens nela intervenientes, são fictícias.



Maria dos Anjos é diagnosticada com incapacidade elevada


Segurança social é chamada a intervir na situação da idosa

Debilitada, afastada do marido e dos filhos, que seguiram as suas vidas por caminhos diferentes, e com poucas possibilidades económicas, Maria dos Anjos começou a entrar numa severa depressão que a deixava mais vulnerável. Foi diagnosticada com síndrome depressiva muito grave e acabou por atentar contra a sua vida duas vezes. A diabetes também era um problema, mas Maria dos Anjos queixava-se muito da artrose grave nas ancas e coluna vertebral que lhe limitavam os movimentos. A idosa foi diagnosticada com 74% de incapacidade física e foi encaminhada pela Segurança Social para uma família de acolhimento.


Fragilidades da idosa conduzem-na à integração em lar social

A família de acolhimento não se conseguiu adaptar às constantes demandas da idosa. Devido aos males que sofria, Maria dos Anjos requeria muito apoio, tanto físico como emocional, o que sobrecarregou demais os cuidadores inexperientes e pouco preparados para as necessidades da idosa. Posto isso e, perante a recusa da família em acolher por mais tempo a senhora, a Segurança Social acomodou-a no lar da Santa Casa da Misericórdia local, onde finalmente estava bem acomodada, com os cuidados de vigilância e proteção de que necessitava, para evitar uma situação trágica, como já se tinha verificado no passado. 



Parca pensão de Maria dos Anjos não cobre a mensalidade

Com uma pensão que não chegava aos 400€, a idosa não podia assegurar a mensalidade, mesmo com a comparticipação da Segurança Social. O valor a pagar seria de 550€, já com a contribuição social, mais os custos da medicação, sem incluir outros extras. A idosa não sabia o que poderia fazer. Debilitada, desgastada e permanentemente com dores devido à artrose, foi aconselhada a pedir uma pensão ao marido, pois, apesar de não fazerem vida juntos, continuavam casados. Mas foi quase sem surpresas que o tribunal indeferiu o pedido, uma vez que o marido não tinha quaisquer condições de lhe prestar alimentos.



A Idosa recorre a tribunal para receber pensão dos filhos


Idosa aconselhada pelo lar, leva filhos desavindos a tribunal

Perante a situação económica frágil de Maria dos Anjos, a idosa foi aconselhada pelo lar a pedir alimentos aos seus cinco filhos em sede de tribunal. Acompanhada pelo advogado que lhe tinha sido nomeado pelo apoio jurídico, a idosa entrou na sala de audiência do tribunal auxiliada por uma bengala. Os filhos, que se tinham desavindo com a mãe há vários anos, olharam com desagrado para a progenitora, que os tinha acusado ao tribunal. Eles consideravam que não tinham que ajudar a mãe, até porque nem sequer tinham relações de afeto com ela.



Os filhos são obrigados a dar conta da sua situação financeira

Um por um, os filhos são chamados a depor naquela sala de tribunal. Respondem às questões colocadas pelos advogados e pelo juiz, que querem saber se têm suporte financeiro para poder contribuir para auxiliar a mãe. Carina trabalha como empregada de balcão e aufere o ordenado mínimo. Vive com o companheiro, o dono do restaurante onde trabalhava, que por sua vez, declarou pouco mais que o ordenado mínimo. O casal diz que vivia numa casa arrendada. 

Já a sua irmã, Teresa, vive do ordenado mínimo que recebe da fábrica e de uma pensão de sobrevivência de 170€. A filha, desempregada, vive com ela na casa que comprou em co-propriedade com um sobrinho, tendo de pagar renda ao banco. A filha mais velha, Otília, também ela a sofrer de uma doença crónica, disse que apenas aufere 290 € mensais a trabalhar como porteira, tendo auxílio financeiro do seu filho, uma vez que não consegue suportar as despesas sozinha. Já o irmão António, casado e com uma filha, declarou que trabalha numa fábrica a receber pouco mais que o salário mínimo. Já a esposa aufere o salário mínimo como auxiliar numa escola.

Por último, a filha Daniela, também empregada de um restaurante, declara que ganha o ordenado mínimo e vive com o filho e respetiva namorada em apartamento próprio. O filho, entregador de pizza, tem um salário variável, a rondar os 250 €. Estando a pagar a prestação mensal ao banco e com o filho apenas a ajudar nas despesas correntes, declara que não tinha condições de auxiliar a mãe.



O tribunal atende favoravelmente ao pedido da idosa

Depois do tribunal ter recolhido provas e ouvido as declarações dos cinco filhos de Maria dos Anjos, o juiz analisou a situação financeira dos cinco filhos, para confirmar se poderiam auxiliar a mãe. Segundo o Código Civil Português, o dever de assistência compreende a obrigação de prestar alimentos e a de contribuir, durante a vida em comum, de acordo com os recursos próprios, para os encargos da vida familiar. Ora, perante esta lei, o juiz julgou parcialmente procedente a ação. Decidiu que quatro dos cinco filhos tinham condições de auxiliar a mãe, condenando-os ao pagamento mensal de 202€, ao invés dos 285€ que Maria dos Anjos pedia. Isto dava um valor de 50.50€ mensal a cada filho, excluindo Otília, que foi absolvida, por não ter condições económicas para auxiliar a mãe. 



Um dos cinco filhos recorre da decisão do tribunal


Daniela não acata a ordem do tribunal de ter que auxiliar a mãe

Enquanto que três dos filhos condenados a pagar acataram a decisão, já Daniela ficou inconformada. Não compreendia porque tinha de auxiliar a mãe, já que não mantinha contato com ela há vários anos. Recebendo o ordenado mínimo, com o filho e a namorada a viverem juntos com ela, as despesas acumulavam-se, apesar do filho ajudar com algumas contas. Achava também que o juiz do tribunal da comarca não tinha analisado bem as despesas nem o real salário que ela auferia. O dinheiro era escasso e 50€ ao mês fazia-lhe muita falta. 


A filha da idosa apela ao tribunal superior por insuficiência de recursos

Inconformada com a decisão do tribunal de primeira instância, Daniela apelou ao tribunal superior, discordando das contas que o primeiro juiz fez, ao analisar a sua situação financeira. Em primeiro lugar, apontou que tinha baseado as suas contas no salário de 580€, mas, esse valor dizia respeito ao valor ilíquido, ou seja, na realidade Daniela levava para casa 516€. A advogada de Daniela ainda apontou que o tribunal de primeira instância tinha dado como provado que o filho e a namorada ajudavam no pagamento das despesas correntes. No entanto, deveria referir que apenas ajudavam nas contas de água, luz e gás, sendo que a alimentação era comprada à parte. Segundo o apelo ao tribunal superior, na análise destes valores, pouco sobrava a Daniela para fazer face às suas despesas, e não poderia despender de 50 € mensais para ajudar no pagamento da mensalidade do lar de idosos à sua mãe. 



Tribunal Superior não dá provimento ao apelo da filha inconformada

Na análise do tribunal superior face ao apelo de Daniela, os juízes consideraram o apelo improcedente e explicaram que no valor do salário mensal de Daniela, mesmo sendo ilíquido, não havia sido contabilizado o valor do subsídio de alimentação e que, verificando os recibos da filha de Maria dos Anjos, o ordenado líquido era superior aos 580€. Por essa razão, não se justificava a correção da primeira sentença. Em relação às despesas, o tribunal superior também considerou que o juiz do tribunal de primeira instância estava correto, por essa razão consideraram que Daniela tinha condições de prestar auxílio à sua mãe, confirmando a sentença que o primeiro tribunal tinha dado. 



O dever de assistência aos pais que muitos desconhecem

Muitas pessoas desconhecem que devem assistência aos pais, não apenas em termos éticos mas também definidos por lei, mesmo que estejam desavindos. O Código Civil é claro nessa matéria, em que pais e filhos devem-se mutuamente assistência, uma obrigação de prestar alimentos e a de contribuir de acordo com os próprios recursos. Acontece que não é habitual os pais recorrerem a tribunal, por falta de posses ou por desconhecimento das leis, ou mesmo porque não querem colocar os filhos nesta situação. 

Neste caso, o que terá acontecido é que a Segurança Social, em conjunto com o lar de idosos, ou uma destas entidades terá informado a idosa dos seus direitos e terão influenciado a senhora nesse sentido, uma vez que a mensalidade do lar e a medicação não estavam garantidas pela parca reforma. 


Os filhos foram chamados à responsabilidade, e vexados publicamente em tribunal, pela situação da mãe, o que não teria acontecido se todos tivessem colaborado em conjunto para auxiliar a mãe a pagar o lar. 



A questão é que se um filho assumir o papel de cuidador, providenciando o auxílio e os alimentos ao idoso, provavelmente a Segurança Social não se irá intrometer, mas o filho cuidador poderá chamar à responsabilidade os outros irmãos, uma vez que são todos obrigados a contribuir na medida das suas posses. Embora o Estado Social também tenha o dever de providenciar o bem-estar dos cidadãos, o facto é que a responsabilidade familiar fala mais alto. Muitas vezes, as leis são vagas e os tribunais acabam por fazer valer-se do senso comum para avaliar os casos. As famílias devem analisar a necessidade de auxílio dos pais idosos, mesmo que haja desavenças. Será melhor prevenir situações constrangedoras como a que ocorreu com os filhos de Maria dos Anjos.



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