Lares e família em tribunal: A mensalidade que nunca foi paga

Por Sónia Domingues , 09 de Fevereiro de 2023 Notícias


Conforme o juiz do Tribunal da Relação fez a leitura do acórdão que revogava a sentença do Tribunal de primeira instância, as duas irmãs deixaram cair o queixo e cruzaram os olhares, num misto de choque e incredulidade. O primeiro julgamento correu-lhes de feição e agora estavam convencidas que a decisão do tribunal superior também as iria livrar de tal dissabor…

Neste artigo, a Lares Online apresenta uma história ficcionada de um acórdão real de um tribunal português, que opunha duas irmãs ao lar de idosos onde o irmão estava acomodado. As decisões são factuais e verídicas, apenas as personagens são fictícias.



Um irmão que precisava de apoio


Depois da morte dos pais, a doença de Jorge agravou-se 

Maria e Teresa nasceram e cresceram numa família humilde, juntamente com o seu irmão mais velho, mas, chegado aos 19 anos, Jorge começou a dar sinais inquietantes. Quando o pobre homem teve um surto violento contra os próprios pais e as irmãs, os vizinhos tiveram que chamar a Guarda para o segurar.

Afinal de contas, descobriu-se que o Jorge sofria de uma doença sem cura chamada de esquizofrenia paranóide. Sem trabalho, e com medicação pesada para tomar todos os dias, depois de os pais terem morrido, a doença agravou-se. A cada curva da vida, acabava por ir parar às mãos do tribunal, que o internava num hospital psiquiátrico por várias temporadas. 



Uma assistente social contactou as suas irmãs, que rejeitaram ajudá-lo

Quando Jorge estava a terminar a última medida de segurança imposta pelo Tribunal, uma assistente social dos Serviços de Reinserção Social contactou as irmãs, para saber o que fazer com ele. Jorge ainda vivia no antigo lar que pertencera aos pais, mas foi considerado inabitável.

A doutora Clara queria saber se alguma delas tinha disponibilidade para acolher o irmão esquizofrénico no seu lar. Não é de estranhar que a resposta tivesse sido um rotundo não. Não, nem pensar colocá-lo ao pé das suas famílias, com todas as perturbações que essa decisão iria acarretar.



Estabilidade e conforto no lar de idosos


À revelia das irmãs, a assistente social encontra um lar para Jorge

As irmãs receberam depois uma carta em casa, em que a Doutora Clara as informava que, em virtude de elas não terem procurado encontrar uma alternativa, então seria a assistente social que iria tentar encontrar um lar de idosos que acolhesse Jorge. Maria e Teresa não colocaram quaisquer entraves à ida do irmão para um lar de idosos.


Já adequadamente medicado e controlado, Jorge deu entrada num lar de idosos que aceitava esquizofrénicos clinicamente controlados. Ele aceitou a proposta de ingressar naquela instituição, uma vez que a sua casa não tinha condições. No lar de idosos era muito estimado. Por não ter apoio da família, os auxiliares davam-lhe uma especial atenção. 



As irmãs nunca pagaram a comparticipação familiar a que eram obrigadas

O contrato assinado previa que a parca reforma dele, de 250€, seria para pagar a mensalidade e o restante teria de ser a família a assegurar. As duas irmãs disseram que sim a este acordo, não tinham outra alternativa viável para atar a ponta solta que o irmão representava nas suas vidas. Mas nunca chegaram a cumprir. Jorge continuou a morar no lar, mas a instituição não viu nem um cêntimo por parte da família deste residente.



Quatro anos depois, o lar de idosos decide tomar uma posição

Volvidos quatro anos, o lar de idosos mudou de mãos. A Dra. Sofia e a Dra. Renata eram as novas proprietárias da instituição e quiseram discutir a situação do Jorge com a família, antes de recorrerem ao tribunal. As irmãs nunca pagaram o remanescente da mensalidade à antiga proprietária, nem tão pouco visitavam o irmão, que estava cada vez mais frágil e cansado de lutar contra os fantasmas da sua cabeça. 

As novas proprietárias queriam resolver a contenda a bem, antes de avançarem para tribunal. Numa reunião, propuseram baixar a mensalidade para o mínimo de 750€, mais os extras, visto que ele apenas auferia 250€ mensais. No entanto, as irmãs não se mostraram interessadas em pagar o restante valor da mensalidade e despacharam-se a sair porta fora.



O confronto em tribunal precipitado pela morte de Jorge


As irmãs tentaram escudar-se com o Regime do Maior Acompanhado

Nesse mesmo ano de 2019, algum tempo após a reunião com as responsáveis do lar de idosos, as irmãs e os respetivos maridos resolveram contactar um advogado, que lhes apresentou uma solução para responderem em tribunal.

As irmãs Maria e Teresa decidiram avançar com um processo de maior acompanhado, que, disse-lhes o advogado, facilitava a tomada de decisões em relação ao irmão. Dito e feito. Avançaram com o pedido e requereram a retroatividade desde 2014, ano em que Jorge tinha dado entrada na instituição. 



A herança de Jorge é entregue às irmãs que nunca o visitaram no lar

Como se adivinhasse o imbróglio que aí vinha, Jorge, acometido por uma doença súbita, deu o seu último suspiro no quartinho aconchegante do lar de idosos que tinha sido a sua casa naqueles últimos cinco anos, rodeado pelos auxiliares que carinhosamente o trataram durante a sua estadia no lar de idosos. 

Tinha passado um mês após a morte de Jorge. As novas proprietárias do lar de idosos discutiam a eventualidade de uma ida a tribunal. Entretanto, as irmãs tinham herdado de Jorge o antigo casebre dos pais e mais alguns terrenos. Não era muito, mas a terra tem sempre valor. 



Na primeira instância, o tribunal deu razão às irmãs

Finalmente chegou a data da ida ao tribunal. As irmãs Maria e Teresa muniram-se de duas defesas contra o lar de idosos: que o irmão não estava bem da cabeça e ainda que a assinatura no contrato era falsa. O marido de Maria e a sua sobrinha disseram em tribunal não reconhecer a assinatura do tio no contrato com o lar de idosos. O marido disse ainda que tinha visitado o Jorge em 2014, quando ainda estava no hospital psiquiátrico, e que ele não estava bom da cabeça e que não devia ter tomado a decisão de ingressar no lar.

Já do lado do lar de idosos estava a assistente social que tinha tratado do caso. Clara explicou no Tribunal que Jorge tinha tomado a decisão de livre vontade, uma vez que o casebre já não tinha condições. Para espanto de muitos, a sentença do tribunal favoreceu as irmãs. No entanto, o advogado que representava o lar interpôs recurso.



O lar de idosos recorreu da decisão inicial


Quando se tornou tutora de Jorge, a sua irmã ficou obrigada a pagar a despesa do lar ou encontrar outra solução

No dia da leitura do acórdão, as irmãs surgiram no tribunal confiantes e olharam com desdém para as proprietárias do lar de idosos que acolheu o irmão durante cinco anos. Conforme o juiz ia lendo o acórdão, linha por linha, e invalidava tudo o que a anterior juíza tinha dado como provado, as irmãs iam-se afundando no banco desconfortável da sala de audiências. Ficou provado que Jorge tomou a decisão de ficar alojado no lar de idosos, uma vez que nada o impedia de ir embora, caso não estivesse de livre vontade.

Em relação à veracidade da assinatura, o acórdão dizia que, a ser falsa, o falsificador podia ter feito um melhor trabalho, uma vez que seria fácil imitar os traços mais tremidos da mão de Jorge. E quanto ao estatuto de maior acompanhado, em que a irmã Maria era tutora legal conforme decidiu o tribunal, com efeitos retroativos desde 2014, trazia a obrigação de fazer face à despesa no lar de idosos ou encontrar outra solução para o irmão.



As irmãs, como não renunciaram à herança, devem pagar ao lar

A sentença do Tribunal era clara: Se as irmãs não renunciaram à herança, então tinham de pagar a dívida do lar de idosos como manda a lei.

O argumento da defesa caiu por terra no tribunal superior. As proprietárias do lar mostravam-se felizes porque os juízes deram o seu ao seu dono. O dinheiro fazia-lhes muita falta, porque o cuidado aos idosos tinha muito de dedicação e pouco de lucro. No final, a Justiça prevaleceu.



A herança final: dívida é o primeiro herdeiro


Tal como explicamos no início deste artigo, esta é uma história ficcionada, mas que contém os factos reais de uma sentença de um Tribunal de Primeira instância, e a reversão da decisão, por um acórdão do Tribunal da Relação. Segundo dita o acórdão real, «a responsabilidade das Rés resulta da circunstância de serem as únicas herdeiras do devedor e como tal sucederam-lhe nas relações patrimoniais, porquanto se mostra que aceitaram a herança na altura em que promoveram e obtiveram a respectiva habilitação de herdeiros».


Muitas pessoas desconhecem que, quando se aceita a herança, também se contraem as dívidas do familiar devedor.



​Estas dívidas devem considerar o montante do valor dos bens herdados, e não podem ultrapassar o que receberam de herança. A surpreendente reviravolta no caso mostra como o Tribunal teve em conta que o lar de idosos teve a boa-fé de baixar a mensalidade, perante a parca reforma do Jorge, para não sobrecarregar as irmãs, mas elas não tiveram quaisquer contemplações. As irmãs não acolheram o irmão, não tentaram procurar uma solução com a assistente social, nem pagaram o remanescente da mensalidade do irmão. A elas cabia essa responsabilidade, uma vez que eram as familiares mais diretas de Jorge e também as herdeiras. Neste acórdão do tribunal, ficou claro que a família não pode fugir às suas responsabilidades para com o lar de idosos.



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